quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Tradição na Capoeira Angola, Instrumento de Libertação ou de Dominação?

A Tradição na Capoeira Angola,
Instrumento de Libertação ou de Dominação?
Texto de autoria das Angoleiras
da Áfricanamente Escola de Capoeira Angola


Na Capoeira Angola, assim como em outras expressões culturais afrodescendentes, a produção do conhecimento se dá através da oralidade. O mais velho é responsável pela transmissão ao mais novo, sempre com o compromisso de manter a essência da origem.
A tradição na Capoeira Angola permite que hoje possamos praticar e ter o contato com essa arte ancestral sem que se perca, com o desgaste do tempo ou com as sabotagens do sistema, suas características: a necessidade de sua existência, a intensidade da luta, o desejo por liberdade, a expressão dançarina dos corpos, a africanidade, a mandinga, a negaça, a malandragem, a enganação, o enigma, a ligação com o espiritual e a brincadeira lúdica de vadiação. É a forma não escrita de preservar e transmitir o legado dos velhos capoeiras.
A tradição sempre pertenceu também à mulher, que, protagonista da vida, transmite sua experiência às crianças, revela receitas de cura, é guardiã de histórias, guerreira incansável com força interna e física, participante da grande roda da vida.
Mas como são construídas, na contemporaneidade, as relações de gênero na Capoeira Angola?
São evidentes as diferenças, construídas socialmente, entre homens e mulheres capoeiristas. Falamos de diferenças que são apresentadas como naturais e inquestionáveis, como por exemplo, "a sensibilidade feminina” x “a força masculina".
Não precisamos de uma análise muito profunda para identificar, neste discurso, condições desiguais de exercício de poder na roda de capoeira, onde as mulheres, que historicamente acabaram ocupando posições secundárias, foram subjugadas, rotuladas, subestimadas ou vistas como objeto de decoração servil aos prazeres sexuais.
Colocar essa temática em discussão é um dos objetivos desse evento que convencionamos chamar de "Adão, Adão cadê Salomé, Adão?".
Acreditamos na força de nossa voz e na Capoeira Angola como instrumento educador, capaz de transformar situações de discriminação e injustiça em diversos níveis. Por esse motivo buscamos novas formas de relações entre mulheres e homens capoeiristas.
Assim como na sociedade em geral, também na Capoeira Angola as mulheres têm atuado e se engajado. Percebe-se hoje a quantidade crescente e expressiva de alunas atuantes nas escolas e grupos de capoeira.
Vale lembrar que o enfraquecimento da mulher vem de outras culturas européias de santificar, esconder e fragilizar, e não das culturas de matriz africana, que nos ensinam a força das mulheres guerreiras, das mães, do respeito e da coletividade que sem as mulheres não seria possível.
No sistema social em que vivemos nos querem apáticas. A Capoeira Angola quebra com essa lógica. Gingamos na roda, nas voltas que o mundo dá, nos movimentamos contra a gravidade e cantamos alto para que nos escutem os ancestrais. Só os peixes mortos seguem a correnteza do rio.
Não nascemos com sentimentos de preconceito, isso não vem da nossa natureza.
Para nós, da Áfricanamente, não nos servem mais os argumentos equivocados e preconceituosos que se escondem no discurso da tradição com o intuito de perpetuar relações de dominação que acabam por enfraquecer o axé das camaradas.
Manter cânticos ou formas de organização na roda que venham carregados desses valores dominadores não contribui em nada para a libertação e o respeito que todas e todos buscamos através da Capoeira Angola.
Costumes se modificam através dos tempos e como a capoeira não é estática, ela negaceia por ânsia de sobrevivência. Os que virão depois de nós saberão da movida de homens e mulheres na busca da quebra das correntes de nossos corpos e mentes e de nossas relações.
Nem mais submissão, nem mais dominadores. Nem mucamas, nem senhores.
Em março de 2008 realizamos uma semana de evento com oficinas, bate-papo e vivências que propôs um momento de olhar as relações de gênero na capoeira angola no sentido de fortalecimento das angoleiras. Foi o “II Adão, Adão Cadê Salomé, Adão?”.
A escolha do tema "Tradição na Capoeira Angola: instrumento de libertação ou de dominação?" veio para fomentar o aprofundamento desta reflexão, que contribui para o crescimento coletivo da capoeira de homens e mulheres.
Mestra Elma, grande amiga e referência da família Áfricanamente, trouxe o ensinamento do Mestre Patinho que marcou a todas e todos nós: “É necessário inserir o novo no velho sem molestar a raiz”.

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